A minha, a sua, a nossa criança interior

Eu trato de crianças. Crianças de 28, 34, 39, 45, 50 anos. As outras, de 8,9 10 ou 12, encaminho a colegas, bem mais competentes do que eu nesse quesito. As “crianças” que eu atendo têm sempre uma marca, deixada pelos adultos na mais tenra idade. Feridas não cicatrizadas que ainda doem. Dias atrás, fiz uma Constelação* de uma senhora de quase 70 anos, que ainda clamava pelo amor de sua mãe, uma idosa de quase 90. E a gente tinha a ilusão de que, quando atingisse a maturidade, estaria completamente preparado para o que desse e viesse.

Sim, existem pais tóxicos. São aqueles que criticam, nunca elogiam, que sempre exigem a perfeição, criando no filho a impressão de que ele nunca é e nunca faz o suficiente. São pais que não olham no olho, que menosprezam o menor sentimento exposto, que deixam os pequenos se virarem, quando ainda estão em formação da personalidade. Falta chão, parede e teto a esses filhos. Não têm um adulto responsável, amoroso e disponível, no qual se apoiar.

O que muita gente não sabe é que a vida fica estagnada porque a criança interna está descuidada. Esses adultos infantis não prosperam, não passam no vestibular, não conseguem manter relacionamentos amorosos satisfatórios, não ganham dinheiro, não têm boa autoestima e aceitam migalhas de todos, para não morrer de fome; em suma, não deslancham em uma ou mais áreas da vida, sob a tutela de uma nuvem negra que lhes acompanha diuturnamente. Não cabe juízo de valor sobre os motivos desse comportamento paterno, pois não sabemos as circunstâncias em que os fatos se deram. Talvez – é uma hipótese – os pais não tenham recebido de seus próprios pais. Ou, talvez, não tenham crescido também. Então, não poderão dar o que não têm. Logo, o que aparece é a ferida exposta e sangrante.

​No filme Duas Vidas, lançado em 2000, o personagem de Bruce Willis, Russ Duritz, tem a chance de se encontrar com seu pequeno “eu”, aos 8 anos de idade. Uma criança que foi marcada pelo medo intenso do pai, ao perceber que sua esposa estava morrendo e que teria que criar sozinho os filhos pequenos. Russ adquire um tique facial, no momento em que o pai, apavorado, lhe expõe a doença da mãe. Além dessa aquisição física, Russ torna-se um homem arrogante e hipócrita, armaduras contra a sua natureza afetiva. O filme é emocionante e demonstra, claramente, que podemos revisitar o passado – senão literal, pelo menos simbolicamente – e colocar no colo aquela criança, doente emocionalmente.

Uma ferida dói. Todos já nos ferimos. A maioria dos profissionais de saúde sabe que, para haver cicatrização, é necessário limpar bem a chaga e extirpar toda secreção ou sujeira. Enquanto se limpa a lesão, sentimos dor. Mas, só assim, haverá reparação completa dos tecidos.

Limpar a ferida emocional requer falar sobre ela, dar nome aos bois, nomear os sentimentos, metabolizá-los e drená-los de forma eficaz; Requer pesquisar o passado de seus próprios pais e reconhecer que eles, provavelmente, também têm chagas não tratadas; Requer sair da posição de vítima e deixar de execrar o suposto vilão. E requer assumir a responsabilidade pela autoconhecimento, de modo a passar da infantilidade para a “adultice”. Todos esses aspectos são levantados, tratados e elaborados através da psicoterapia. Que obedece a um tempo interno, não ao tempo cronológico. Portanto, esse processo pode durar alguns meses ou alguns anos, dependendo da profundidade da lesão. O primeiro passo é começar!

*Constelação: http://psicologia.escritaquecura.com.br/constelacoes/ 

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