Sobre a negação da morte e a beleza das flores

   Escrevo esse texto hoje, sexta-feira da paixão, data extremamente importante para os cristãos do mundo todo, entre os quais eu me incluo. Geralmente é um dia cinzento, no céu e na alma e que induz ao recolhimento e às reflexões.
    Depois de amanhã, na ressurreição, tudo será festa e o sol brilhará mais forte. Depois de amanhã…porque, agora, gostaria de falar sobre esse assunto tão desagradável e tão presente em nossas vidas.
    Dizer que a morte é a única certeza que temos é frase feita e não nos toca quase nada, a não ser que a pessoa que partiu seja um ente muito querido. Então, entre lágrimas e soluços, nos pegamos a pensar: Qual o sentido disso? Pra que viver, se todos morreremos? Poderia ter sido de outro jeito? Será que quando nossa hora chegar, não haverá, mesmo, nada a fazer? Mil el​u​cubrações mentais que não nos aliviam no momento da dor.
    Não é de hoje que tentamos driblar a morte. Afinal, o que faziam os faraós? De acordo com a religião egípcia, a alma da pessoa precisaria de um corpo para a vida após a morte. Portanto, devia-se preservar este corpo para que ele recebesse, de forma adequada, a alma. Junto com os corpos mumificados eram alojados nos túmulos alimentos, roupas, móveis, jóias… Afinal, o morto necessitaria de todos esses apetrechos quando despertasse. Atualmente, qual é o papel da malhação frenética, do viagra, das cirurgias plásticas e do botox? Nada mais do que a ilusão de que, assim procedendo, iremos aumentar uns bons pares de anos na nossa conta da vida. No íntimo, sabemos que nada do que fizermos irá adiantar: não nos esconderemos “dela” para sempre.
​   Já que viver com essa carga, sempre pensando no dia fatídico, traz o preço da desesperança, nos atiramos no trabalho, na roda – viva diária,  nos afazeres súbitos. Para negar ou recusar a possibilidade de uma surpresa catastrófica. Então, não prestamos atenção às trágicas notícias dos jornais, que foram as mesmas ontem, hoje e o serão amanhã. O antes extraordinário vira ordinário, comum, cotidiano. E vamos seguindo com a vida, trabalhando, viajando, criando nossos filhos, tomando cerveja com os amigos, gargalhando, enfim, vivendo como qualquer mortal falível.  E a vida ganha o sabor da realidade, ilusoriamente normal.
  Mas ter consciência de que a vida é efêmera não deve nos tirar a alegria da contemplação. Lembro-me  de um ensaio escrito por Freud, em 1916 e intitulado “Sobre a Transitoriedade”. Nesse texto, Freud relata uma conversa que teve com o poeta Rilke durante um passeio que faziam pelos campos das Dolomitas. Rilke, embora admirasse a beleza do cenário, não conseguia surpreender-se com aquela alegria plena que inunda a alma. O poeta sabia que o inverno destruiria a paisagem e essa transitoriedade da beleza era-lhe extremamente perturbadora, a ponto de impedir a paz da contemplação, pura e simples. Freud  diagnostica  o  desconsolo  de  Rilke  como  uma  decisão de expulsar de si mesmo a dor insuportável  da  perda.  Dessa forma, a antecipação do luto impediria, teoricamente, o sofrimento inevitável.
   O cenário tem um efeito contrário para Freud. Para ele,  a  finitude  da  beleza  aumentava  o  seu  valor: “Uma  flor  que  dura apenas  uma  noite  nem  por isso parece  ser menos  bela”, diz ele. Sábio Freud! Abrir-se à irreversibilidade do tempo significa abrir-se para a possibilidade de desfrutar o instante presente, sem ter a necessidade desesperada de garantias futuras. Aceitar o que vem e o que vai, na paz da alma, significa, simplesmente, viver as possibilidades que se apresentam, sem pressa, sem expulsão, sem negação. Aceitar, simplesmente. E deixar fluir…

escrita

Website:

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *